sábado, 29 de janeiro de 2011

DIÁRIO DE GUERRA - A FEB EM QUADRINHOS

Um dos maiores flagelos da humanidade e que persiste até os dias de hoje, as guerras são também motivo de grande fascinação, já que é assunto retratado em diversas formas de arte, e as Histórias-em-Quadrinhos não ficariam de fora desta. Se nos dias de hoje a produção no estilo é quase inexistente (uma honrada e talentosa exceção encontra-se no álbum Destemido, organizado por Dennis Oliveira), no passado foram feitos milhares de títulos em gibis narrando histórias do que acontecia nos campos de batalha. Os EUA possuem tradição de se envolver em conflitos diversos – e, mesmo com todos os defeitos que tenha como nação, dos pecados de seus governos, foi o grande guardião da liberdade durante a II Guerra Mundial, e esta tradição gerou uma formidável geração de contadores de histórias de guerra. Muitas destas histórias vieram parar nos Quadrinhos, um gênero que rapidamente tornou-se muitíssimo apreciado nos tempos de grande popularidade dos gibis. Dentre os roteiristas, o nome de Robert Kanigher é o primeiro que nos vêm à cabeça, não por ser um precursor do estilo, mas por sua vasta produção e principalmente pelo tom renovador de suas histórias, deixando de focar os atos heróicos simplesmente e dando mais destaque aos nobres sentimentos humanos que afloram mesmo em circunstâncias tão terríveis. Kanigher apresentava-nos em suas histórias de guerra personagens tremendamente humanizados, aboradva temas profundos, intensos, sem jamais se descuidar da finalidade da HQ: entreter o leitor. Todos estes ingredientes Kanigher levou a seu personagem mais famoso, o Sargento Rock da Companhia Moleza (Sgt. Rock), que apareceu originalmente nas páginas de Our Army At War e cujo sucesso galgou o personagem a um longevo título próprio, bem sucedido entre os leitores brasileiros também, tendo sido publicado pela Ebal. Cito Kanigher como representante de uma geração de notáveis roteiristas. Já dentre os artistas brasileiros dos quadrinhos que durante os anos 60 do século passado tiveram a oportunidade de escrever e desenhar sobre histórias de guerra, seguiram a linha de Kanigher, e como o Brasil também teve sua participação, sua importância no desfecho do conflito da II Guerra Mundial, não faltaram histórias, não faltou inspiração! Os soldados e oficiais da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que entre erros e acertos cumpriram valorosamente sua missão nos campos de batalha da Europa, já haviam se tornado conhecidos personagens de gibis (em títulos como Conquista e Combate), quando na metade final dos anos 1960 a Gráfica & Editora Penteado (GEP), de Miguel Falcone Penteado, lançou nas bancas o gibi Diário de Guerra, propondo aos leitores logo na capa do primeiro número a chamativa advertência de que se tratava de “uma revista de guerra diferente”. E talvez tivesse mesmo razão: publicando HQs produzidas exclusivamente por artistas brasileiros (ou estrangeiros aqui radicados), muitas das histórias lançadas nesta revista mostravam personagens profundamente humanizados, revelando aos leitores situações reais vividas pelos pracinhas brasileiros - não foi a toa que, dentre os roteiristas da GEP estava Alberto André Paroche, um legítimo ex-pracinha que havia visto de perto os horrores, e, paradoxalmente, a solidariedade nos conflitos bélicos na II Guerra. Garth Ennis, badalado roteirista da moçada de hoje em dia, que se destacou pela excessiva violência explícita com que narra suas histórias, na GEP seria no máximo contínuo, ou office boy. Coube a mim a sorte de encontrar quatro números desta coleção, num sebo na cidade paulista de Bauru: os números 1, 7, 8 e 10, lançados nas bancas brasileiras provavelmente entre os anos de 1968 e 1969. A seguir vamos comentar mais detalhadamente cada um destes gibis.

Diário de Guerra n. 1 estréia com a HQ chamada “Mêdo” (na época ainda se grafava o acento circunflexo), escrita por Paroche e ilustrada pelo grande Rodolfo Zalla, argentino de alma brasileira. Retratando a situação de alguns pracinhas da FEB, fala exatamente daquele sentimento, ou daqueles sentimentos que mais afligem os soldados de qualquer nação: quando a covardia e a coragem se confundem, as conseqüências podem ser trágicas. É também da dupla Paroche-Zalla a segunda história deste primeiro número, “Claudia”, uma fascinante love story nos campos de batalha italianos. Um pracinha se apaixona por uma jovem italiana que tivera o rosto deformado por soldados alemães (e que ainda haviam matado seu pai). A feiúra na face da moça não impede o amor devotado pelo soldado brasileiro. De volta ao combate, ele tem chance de se vingar dos algozes de Claudia, mas ao retornar para a cidade onde a encontrara, receberá uma péssima notícia. Completa esta primeira edição de Diário de Guerra “Uma Nova Esperança”, que não fala sobre a FEB, mas um relato banal sobre confrontos entre americanos e chineses... mas não seriam coreanos, não? Huum... escrita e desenhada por Osvaldo Talo (que, assim como Zalla, é um argentino apaixonado pelo Brasil), se o roteiro parece pouco inspirado, seus desenhos dinâmicos muito valorizam a HQ.

Diário de Guerra n.7 traz belíssima capa de Rubens Cordeiro, e começa com “O Grande Covarde”, escrita por Milton Mattos e desenhada pelos irmãos Edno e Edmundo Rodrigues (o notável autor de Jerônimo Herói do Sertão, entre tantos outros personagens em Quadrinhos). No confronto com os alemães, um soldado da FEB angariava forte antipatia dos oficiais e dos colegas, pois se mostrava como um fervoroso cristão e por isso se recusava a tirar a vida de outrem. Ganhou o apelido de “Bíblia”, pois vivia citando os versículos sagrados aos companheiros, mesmo diante de fogo cerrado. Mas, quando a “cobra vai fumar” (o lema dos combatentes em ação), “Bíblia” surpreende pela impetuosa coragem - e sempre agindo como deve agir um bom cristão. Os irmãos Rodrigues se destacam por mostrar nas HQs um estilo que se assemelha ao do mestre Joe Kubert. Segue o número 7 com memorável HQ escrita e desenhada por Rodolfo Zalla, chamada “O Equilibrista”, que aborda um tema comum à FEB: a diversidade dos pracinhas, não só regionais mas também nos ofícios & profissões dos soldados que formavam as tropas. Aqui, um telefonista e um equilibrista de circo é quem vão tentar resolver a parada, cortando fios que eram essenciais para as comunicações entre os inimigos. Esta HQ foi republicada anos depois, já na década de 1980, num gibizão da Editora Ninja de Fernando Mendes, Pelotão Suicida (que é, a propósito, o nome de outro gibi de guerra contemporâneo do Diário de Guerra, mas lançado por outra editora, a Jotaesse). A sétima edição se encerra com chave-de-ouro, com outra notável HQ da dupla Paroche-Zalla: “Santa Maria Villiana”, onde o próprio Paroche é o narrador, lembrando um episódio ocorrido realmente, uma batalha em destroçada cidade italiana onde o roteirista e ex-pracinha perdeu muitos de seus colegas, e muitos alemães perderam a vida também - mas nem o bombardeio conseguiu destruir a imagem da Santa Maria. Pode-se “acusar” esta HQ de ser amargurada e pessimista, mas não foram estes os sentimentos predominantes durante os conflitos? É perfeitamente compreensível que um participante, em espectador vivo e presente daqueles tristes acontecimentos, traga em seu coração algumas mágoas, alguns traumas, sentimentos e lembranças muito difíceis de se lidar.
Diário de Guerra n.8 traz linda capa do grande Sérgio Lima (profícuo ilustrador que na GEP ficou conhecido por seu traço em Lobisomem e também na revista da Múmia, ilustrando roteiros de Gedeone Malagola), e abre com “Fim-De-Semana No Front”, outra escrita por Milton Mattos e ilustrada por Edno & Edmundo Rodrigues. Dois pracinhas, Tião Pretinho e Mangueira, querem aproveitar uma pequena folga entre uma batalha e outra e tentar descolar algumas gatinhas na cidade de Nápoles (famosa por suas belas e jovens mulheres), mas a guerra não dá trégua e os dois combatentes, ambos tidos como “alterados” (indisciplinados) por oficiais & colegas, mostram muita coragem na hora do “vamos-ver”. Uma chance para o roteirista Mattos abordar outros assuntos como racismo, malandragem, religiosidade e amizade. Paroche-Zalla retornam com tudo em “À Sangue Frio”, história violentíssima que acaba comovendo até mesmo o lado inimigo - uma boa chance para mostrar aos leitores um fato histórico comprovado por autores como Hélio Silva e César Maximiano, e desconhecido da maioria das pessoas: a dignidade dos soldados alemães em combate. Maxiamiano comprova, em seu livro sobre os pracinhas da FEB, Onde Estão Nossos Heróis, que nos diversos campos de batalha por toda a Itália eram encontradas lápides improvisadas, grafadas em alemão, homenageando o guerreiro inimigo morto em combate - os soldados brasileiros, por seu lado, faziam o mesmo sempre que tinham oportunidade de enterrar algum “bosche” (o respeito mútuo que existia entre os combatentes brasileiros e alemães é algo que merece mesmo maior estudo dos historiadores). Encerra esta outra notável edição de Diário de Guerra mais uma do trio Mattos-Edno & Edmundo Rodrigues: “Homens Contra Tanques”, muito mais do que mostrar atos de heroísmo dos pracinhas, toca num outro assunto que foi muito marcante durante a participação brasileira, especialmente nos primeiros meses de recrutamento: as rusgas entre eles próprios, tão diferentes eram entre si os soldados convocados para a guerra. Nesta história, Maritaca e Bahia, dois pracinhas do Regimento Sampaio, trocam tantas ofensas que o sargento não agüenta e manda os dois resolveram a coisa no muque. Exaustos de tanto trocar porrada, ambos finalmente vêem-se obrigados a ajudar-se mutuamente quando são atacados por tanques alemães. Resolvida a parada com os blindados, ainda restavam as velhas rusgas a se acertar...

Diário de Guerra n.10 decepciona a quem leu os números anteriores, talvez por dedicar muito menos páginas às aventuras da FEB. De qualquer forma, “O Corsário”, de Rodolfo Zalla, tem argumento interessante: durante as batalhas navais entre ingleses e alemães, um oficial britânico acaba prisioneiros dos inimigos germânicos, sendo que o capitão destes era ninguém menos que seu genro - que, por sua vez, dispensa ao sogro um tratamento deveras humanitário. Outro mérito de Zalla nesta HQ foi o de ter conseguido produzir trama de guerra com muito suspense, e nenhuma cena de violência explícita. É também de Zalla a segunda HQ desta edição, “Desembarque”, três páginas narrando sobre soldados canadenses durante um desembarque num explosivo litoral. Termina com outra do trio Mattos & irmãos Rodrigues: “O Soldado Perdido” - perdido mas não sem coragem, afinal, tantos eram os soldados que lutavam contra o nazismo, a favor da fraternidade, da tolerância e da liberdade, promovendo, com o sangue e com a vida, a esperança de um mundo melhor. (JS)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

OS CONQUISTADORES

No ano de 1969 a Gráfica & Editora Penteado (GEP) lançava nas bancas um gibi especial chamado Os Conquistadores, apresentando aventura em HQ com o personagem Antônio de Almeida Lara. A ação transcorre no ano de 1700, narrando enredo fictício mas que demonstra o bom conhecimento da História que tem o roteirista, ele que aparece muito bem acompanhado por um ilustrador que apresenta brilhantemente cenários & personagens. Poucas informações pude encontrar a respeito dos autores. Na capa há uma assinatura dupla: Andy e Raposo. Tudo indica ser Andy o roteirista, e Raposo o ilustrador. Ou terá sido Andy o ilustrador, e Raposo o artefinalista? Ou ainda, seria Raposo um pseudônimo (aproveitando o nome do famoso bandeirante, Raposo Tavares)? Tive a chance de consultar mestre Gedeone Malagola, que por ocasião do lançamento de Os Conquistadores era diretor artístico da GEP. Gedeone relembra que os autores entregaram o material e sumiram sem mais dar notícias, e não voltaram à editora nem mesmo para receber o pagamento (Gedeone confirma que a revista vendeu muito bem). Uma pena, e infelizmente, não é o único exemplo de talentosos autores brasileiros das HQs que abandonam a estrada antes do meio do caminho...


Quanto ao referido personagem principal deste gibi, Antônio de Almeida Lara é um bon vivant da vila de São Paulo, gastando a herança que recebeu de seu pai, renomado bandeirante, em farras e bebedeiras. Até o dia em que o dinheiro finalmente se esvai e, para ajudar sua mãe, Lara decide dar fim à boa vida e parte de encontro à bandeira de seu tio Fernão de Albuquerque, que buscava ouro se embrenhando no sertão paulista. A partir daí são incontáveis os perigos e as aventuras que atravessam o caminho do rapaz, fazendo desta esquecida HQ um pequeno clássico. Antônio de Almeida Lara se depara com todo tipo de perigo, especialmente animais selvagens: onça pintada, porcos bravios, sucuri, lobo guará... encontrando o tio, este se mostra severo porém justo, e bota o sobrinho para trabalhar duro. Outro que alcançou a bandeira e acabou se tornando amigo de Lara é o negro Angola, fugido de seus donos, inconformado por ter sido separado de sua amada companheira. Além dos perigos da mata, os homens da bandeira de Fernão Albuquerque ainda têm que enfrentar facínoras saqueadores, que desejam tomar na mão grande todo ouro exaustivamente garimpado pelo grupo bandeirante. Após terrível batalha, os bandidos conseguem ser detidos. Na segunda parte da “Saga de Lara”, o herói percorre o trajeto de volta pra casa junto de seu novo escravo-parceiro, o negro Angola (por quem se afeiçoou e admira a coragem). No caminho encontram Pedro, caçador de ouro que havia sido abandonado e traído por seu grupo. Os três passam então a enfrentar novos perigos, até o regresso ao lar dos Lara, onde Antônio pôde enfim abraçar sua mãe e dar o dinheiro ganho com tanto sacrifício na bandeira. Infelizmente Os Conquistadores ficou nesta única edição.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

JUVÊNCIO, O JUSTICEIRO


Um dos personagens mais populares dos comics em todos os tempos, The Lone Ranger (batizado no Brasil como Zorro) teve origem num programa radiofônico. O Brasil também teve sua versão do Lone Ranger, e que, tal qual seu similar norte-americano, originou-se num programa de rádio, criação de Reinaldo dos Santos: Juvêncio, O Justiceiro. Quem emprestou a voz a Juvêncio foi Vicente Lia. E, se o Zorro tinha um parceiro (como tinham parceiros quase todos os heróis de outrora), o famoso Tonto que em nossa língua possibilitou uma série de piadas e trocadilhos infames, nosso Juvêncio não poderia ficar para trás, e vivia aventuras ao lado do jovem Juquinha – que nas rádios era ouvido através da voz de Wanderley Cardoso, cantor em atividade até os dias de hoje. Graças ao grande sucesso do programa de rádio, a Editora Prelúdio Ltda. passou a lançar as aventuras de Juvêncio em HQs, com revista própria (em fomatinho) a partir da década de 60 do século passado, e que teve ao menos duas dezenas de números. Nalgumas capas vocês podem ler as palavras "páginas coloridas", mas não eram exatamente coloridas como nos acostumamos a ver, mas sim um tom que chamamos de sépia, ou duas cores, em tons de vermelho. Grandes argumentistas e ilustradores dos Quadrinhos brasileiros mostraram seu talento nas páginas de Juvêncio, O Justiceiro: os roteiros ficaram a cargo de Rubens Francisco Luchetti, Gedeone Malagola, Helena Fonseca, Fred Jorge (houve também textos para os quadrinhos escritos por Reinaldo dos Santos), e o desenharam Sérgio Lima, Rodolfo Zalla, José Acácio dos Santos e Eugênio Colonnese. Apesar do evidentemente inspirado no faroeste americano, seus autores se esforçaram em adaptar as aventuras do mascarado para cenários e ambientes brasileiros, mais especificamente em pequenas cidades nordestinas, mostrando os heróis cavalgando pela caatinga e enfrentando cangaceiros.